sábado, 12 de março de 2011

Para nunca se esquecer da censura

Por Antônio Hohlfeldt

BRUNO GOMES/DIVULGAÇÃO/JC
Cale-se, espetáculo do grupo Gato & Sapato
Cale-se, espetáculo do grupo Gato & Sapato

Eis um dos bons momentos que o atual Porto Verão Alegre nos propicia: Cale-se, espetáculo que o Grupo Gato & Sapato apresenta. No pequeno e lotado espaço do Teatro de Arena, podemos rememorar os desafios enfrentados pela recente ditadura militar pós-1964, especialmente as absurdas e ridículas práticas da censura a espetáculos praticados após a edição do Ato Institucional n. 5, de 1968 - neste caso, à produção e à circulação de peças da MPB.

O espetáculo idealizado por Douglas Carvalho recupera a memória de alguns episódios, dentre tantos outros que ficaram anônimos, que se conhece graças a registros e documentos guardados pela própria censura ou pelos artistas. O roteiro começa com Chico Buarque, abrindo com a composição celebrizada por Milton Nascimento, e que jogava ambiguamente com a fonética da expressão “cale-se”, verdadeira intenção do compositor, e “cálice”, indiretamente evocado pelo poema.

É bom a gente poder recordar a valentia e a resistência que, Chico, mais que todos os demais, apresentou naqueles anos de chumbo, resultando inclusive em uma espécie de autoexílio que ele viveu na Itália, de onde regressou, aliás, com um repertório ainda mais crítico, sensível e inteligente, que chegaria ao extraordinárioConstrução, no LP do mesmo nome. Mas o espetáculo se preocupa com músicas proibidas ou cortadas, e assim, passamos por Apesar de você, hilária vingança do compositor contra o Ministro da Justiça, e cuja proibição ainda piorou mais a situação, porque dava sinal de que a autoridade havia se reconhecido na situação evocada, para os inadvertidos, apenas uma canção de amor frustrado ou de dor de cotovelo... Seguimos com Atrás da porta, Pecado abaixo do Equador e Bárbara: quando não eram motivos diretamente políticos, eram alegações falsamente moralizantes, como neste último caso. Aliás, quase toda a trilha sonora de Calabar e a própria peça enfrentaram problemas, tendo sido o espetáculo proibido às vésperas de sua estreia, com pesado prejuízo aos produtores, principalmente a Fernando Torres.

Mas não só Chico enfrentou problemas. O Caetano Veloso de Coca-cola, o Adoniran Barbosa de Samba do Arnesto e Tiro ao Álvaro (neste caso, por alegados desrespeitos gramaticais!!!), Macalé, João Bosco (de Mestre-sala dos mares, homenagem a João Candido, o herói da Revolta da Chibata), Waldick Soriano, Genivaldo Lacerda (de Severina Xique-Xique, evidenciando que a censura não era apenas policial mas também social, como observa o espetáculo), Ivan Lins, Luís Airão, Raul Seixas, Rita Lee, Carlinhos Hartlieb (com O analista de Bagé, interpretado pela dupla Kleiton e Kledir), até o polêmico e provocativo Geraldo Vandré de Disparada - pura vingança dos censores, mas que tornou a composição interpretada por Jair Soares um sucesso nacional e inesquecível - até o absolutamente proibido Prá não dizer que não falei de flores...

O espetáculo traz algumas curiosidades importantes: um gospel de Raul Seixas, as dificuldades enfrentadas por Trem das 11, do Trio Irakitan (composição de Adoniran Barbosa, mais uma vez), e até o Hino do Rio Grande do Sul, que a bancada de deputados estaduais da então Arena proibiu por lei, em sua segunda estrofe, restrição que ainda remanesce e que poderia muito bem ser anulada pela atual Assembleia Legislativa do Estado.

Douglas Carvalho é também um dos três intérpretes em cena (o único masculino). Já tivéramos boa impressão dele na montagem de A autora da minha vida, de Naum Alves de Souza, que o grupo vem apresentando, e aqui ele confirma: excelente ator, dono de boa voz e afinação acurada, Douglas Carvalho contracena com Lilian Roisenberg, soprano de bom registro e igualmente afinada, que evidencia sensibilidade e concentração, e Cláudia Barbot, que tem uma voz de enorme potência, de belo timbre, mas que às vezes se perde na entonação, como ocorreu com Barbara e Desesperar jamais, de Ivan Lins, ainda que emocione com a interpretação de Mestre-sala dos mares.

O espetáculo se completa com um trio de músicos, Julian Eilert, que assina a direção musical ao lado de Caoan Goulart, e Gustavo dos Santos, como convidado. A direção cênica de Leandro Ribeiro buscou explorar as potencialidades de cada intérprete, mas é especialmente acertada na medida em que se preocupou com a intimidade dos intérpretes para com o público, levando em conta a proximidade física de ambos. O que mais emociona é saber que aquele conjunto todo de jovens intérpretes não chegou a viver a má experiência ditatorial, mas ainda assim foi capaz de se interessar por discutir o assunto, como dizem, para evitar que, no futuro, uma vez mais, a gente volte a enfrentar tais descalabros.

Por outro lado, na plateia, alinham-se lado a lado pessoas que sofreram aquele tempo, como eu mesmo - e que fui lembrando dos acontecimentos à medida que os fatos eram evocados, emocionando - e gente muito jovem, que só “ouviu falar”, mas que acompanha ritmadamente as composições, a estas alturas, já páginas viradas e às vezes até esquecidas mesmo pelos compositores, como Caetano e Chico expressavam, recentemente, no extraordinário e emocionante filme-documentário Aquela noite de 1968, quando se recuperava a memória do III Festival da Música Popular Brasileira, então promovido pela Televisão Record de São Paulo, e que revelaria para o Brasil e o mundo as composições de Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso e o Gilberto Gil de Domingo no parque.

O grupo ainda está verde: o espetáculo começa amorfo, com timidez dos intérpretes que, só ao final, ganham fôlego e ênfase, o que pode ser corrigido. Mas o trabalho é muito bom, bem selecionado nas composições, bem estruturado, e que merece cumprir longas e continuadas temporadas entre nós, justamente para a gente nunca esquecer e para os jovens saberem bem o que este País já viveu.

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