sábado, 12 de março de 2011

A reificação humana segundo Shaw

Por Antônio Hohlfeldt

BRUNO GOMES/DIVULGAÇÃO/JC
Grupo Gato & Sapato faz releitura de Pigmaleão, de Bernard Shaw
Grupo Gato & Sapato faz releitura de Pigmaleão, de Bernard Shaw

O grupo de teatro Gato & Sapato trouxe outra bela e inesperada novidade para o Porto Verão Alegre deste ano. Trata-se de uma respeitosa e criativa montagem de Pigmaleão, do irlandês George Bernard Shaw (1856-1950). Dramaturgo pouco conhecido entre nós, embora seu nome seja sempre muito referido, Shaw é famoso por suas tiradas sarcásticas. Seu teatro é extremamente bem armado, dramaturgicamente, e Pigmalião é de seus textos mais bem realizados. Gerou, nos anos 1960, o musical My fair lady, que saiu da Broadway para o cinema e que no Brasil teve a florista ignorante Elisa Doolitle personificada por Bibi Ferreira.

O diretor Leandro Ribeiro surpreende a cada momento. Não apenas o grupo Gato & Sapato evidencia estar formado por um conjunto variado de intérpretes, quanto mostra ter gente de talento, mesmo que ainda necessitando de maior burilamento. Pigmalião comprova isso. Ribeiro seguiu com fidelidade o texto original (nem sempre respeitado pelo tradutor Millôr Fernandes, que mais adapta que traduz). Mas, ao mesmo tempo, aproximou o texto da realidade imediata do público. Assim, Elisa Doolitle é Elisa Garapa, florista do entorno da av. Getúlio Vargas e Venâncio Aires, em cujo cruzamento ela trabalha, oriunda que é da Ilha das Flores (alusão ao filme-documentário famoso?). Do momento em que o foneticista Prof. Henrique Higgins a encontra, na rua, a vender seus produtos, até aquele em que aposta com o amigo Coronel Pickering que é capaz de transformar completamente aquela mocinha, em apenas seis meses, temos um conjunto de elementos que, depois de apresentados ao espectador, serão desenvolvidos e aprofundados pelo dramaturgo.

A lenda original do escultor Pigmalião, que se apaixona pela estátua que ele mesmo produzira de uma mulher, a quem denomina Galatéia e a quem Vênus transforma em mulher de verdade, é parcialmente invertida por Shaw. Se Pigmalião foi capaz de enxergar por trás da dureza da pedra, projetando nela sua sensibilidade, Higgins é incapaz de enxergar qualquer coisa que esteja diante de seu nariz. Assim, é sua “criação”, a transformada jovem Elisa, quem vai se encarregar de revelar-lhe a própria natureza. A peça está marcada por alguns discursos bastante duros para a época de criação da obra (1916), mas não perdeu atualidade nos dias de hoje, em que a reificação é uma das principais marcas de nosso cotidiano.

Higgins tem em Elisa apenas um objeto de realização de um desafio. Não a enxerga, contudo, enquanto ser humano. Invertendo o mito original, Shaw faz com que a “obra” vislumbre seu criador, por ele se apaixone - ou ao menos se interesse - e resolva salvá-lo de si mesmo. Assim, o desfecho da peça, que se desenvolve com cenas sempre interessantes e dramáticas (no sentido de que coisas acontecem que modificam os contextos anteriores) não se caracteriza pelo tradicional “happy end”, mas abre perspectivas humanistas para ambas as personagens.

Leandro Ribeiro mostra, sobretudo ao final da peça, quando Higgins reaparece com um quadro representando a estátua (e quando a própria Elisa admira a estátua, que se encontra em uma pequenina mesa, na sala do professor), que leu com atenção a peça, compreendeu o sentido do mito original e as transformações que o dramaturgo introduziu no tema. Sua direção é, assim, sobretudo um trabalho que respeita cada referência que o antecede e, por isso mesmo, é admirável.

Fernanda Majorczyk - apesar de às vezes forçar demais o agudo da voz - é uma excelente intérprete e ótima atriz. Vai melhorar muito mais, ainda, com a maturidade. O restante do elenco se alterna com eficiência. E o mais interessante é que, em algum momento, cada um deles acaba se afirmando: Nara Wagner, como a mãe de Higgins, cresce ao longo do espetáculo; Patrick Peres, como o pai de Elisa, Alfredo, é simplesmente fantástico, entre o caiçara paulista e o interionano do Mississipi; Taylor Mendonça, como o engraxate, tem boa presença e os demais sempre mostram fluidez no texto e na personificação assumida. Quanto a Douglas Carvalho, que vive o Prof. Higgins, confirma tudo o que sobre ele venho escrevendo, mesmo que, nesta peça, ele erre muito, pela pressa em falar seu texto. Falar rápido, se é a marca da direção, exige, certamente, muito texto decorado.

É evidente que Leandro Ribeiro precisará ter melhor ritmo para a encenação. Este tipo de peça precisa de fluidez. Mas, por exemplo, na passagem das cenas, Ribeiro resolveu bem a questão, com a música ao vivo, de Julian Eilert e Caon Goulart, que não apenas comentam a cena quanto auxiliam na criação de seu clima. E mesmo que em alguns momentos o ritmo caia, de modo geral o espetáculo é sempre interessante e faz o público tanto rir quanto se emocionar com as cenas, o que é muito bom. Em suma, esperando que Pigmaleão retorne mais adiante, na temporada, só se deve exaltar e parabenizar Leandro Ribeiro e seu grupo, que preferem deixar o teatro fácil e de simples passatempo para, mesmo sem perder o divertimento, mostrar bons textos e trazer o público à reflexão, como disse, aliás, extremamente oportuna, sobre a reificação do ser humano.

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